Resenha de Livro: Neon Angel – A Memoir of a Runaway: Um soco no estômago

Alguns meses atrás li Neon Angel – A Memoir of a Runaway (sem tradução no Brasil) e confesso que demorei algum tempo para decidir qual era minha opinião a respeito do livro. Essa “lerdeza” vem por conta do conteúdo ao mesmo tempo inacreditável mas realista, dramático mas seco, aumentado mas eufemizado, cru mas cheio de detalhes.

O livro é a biografia de Cherie Currie, da famosa e notória banda dos anos 70 The Runaways (se você está lendo esse blog e não viu nada de The Runaways ainda clique na barra aí ao lado que tem links aos montes). Escrita efetivamente por Tony O´Neil (porque não, Cherie não é escritora apesar de ser uma habilidosa escultora em madeira utilizando uma motosserra – não estou brincando) a partir dos relatos da própria Cherie, o livro conta a conturbada (é, é a palavra que mais se aproxima) da eterna Cherry Bomb.

Cherie e Marie na adolescência… Impossível dizer quem é quem.

A bio começa com Cherie aos 13 anos e sua relação de admiração/inveja com sua irmã gêmea, Marie. Clássicos da vida adolescente: se acha feia, tem amigos estranhos, uma fascinação obsessiva por um ídolo (no caso David Bowie) e uma família complicada com pais divorciados. Além disso, Cherie gostava de “causar” na escola usando cabelos pintados e mostrando pra todo mundo quem era a mais freak do pedaço. Até aí tudo bem. Só que a coisa começa ficar mais pesada.

Aos 14 anos Cherie é estuprada pelo namorado de sua irmã gêmea. Com vergonha e medo de ser julgada, ela não faz nenhuma denúncia e não conta para ninguém o que aconteceu, com exceção de Marie que a aconselha a ficar mesmo de boca fechada. Visivelmente traumatizada ela mergulha na música, no visual andrógeno de Bowie e como não poderia deixar de ser, nas drogas.

Pílulas, cigarro, bebida, festinhas, shows. Isso tudo com o background familiar cada vez mais deteriorado com direito a pai alcóolatra, rejeição materna (a mãe dela literalmente a abandona em prantos num aeroporto a fim de se mandar pra Indonésia com o namorado) e cunhado irresponsável. A entrada na banda The Runaways sacudiu ainda mais o mundo de Cherie, agora com o excêntrico Kim Fowley a lhe dizer constantemente que ela era feia, incapaz e que não tinha “autoridade rock´n´roll”.

A relação amor/ódio com Kim Fowley: apesar das humilhações constantes, era ele quem prometia o sucesso a Cherie


Os abusos de Kim Fowley com a banda rendem capítulos e mais capítulos inclusive o infame “A aula de educação sexual de Kim Fowley” que inclusive quase rendeu processo por parte do mesmo e um post enfurecido por parte de Jackie Fox (ex-companheira de banda) dizendo que tal coisa nunca aconteceu. Verdade ou não, o capítulo é chocante uma vez que mostra o então gerente da banda abusando sexualmente de uma garota bêbada na frente de Cherie, Sandy West, um amigo delas e Scott Anderson, o outro gerente da banda.

Cherie acusa Fowley ainda de tê-la semi-prostituído para um famoso músico da época. A cena em que Cherie acorda no dia seguinte e vê a si mesma, o cara e o todo quarto coberto de sangue menstrual é tão vívida que é possível sentir a humilhação da garota de então 16 anos.

Brigas internas da banda, depressão, abuso de drogas pesadas, chantagem familiar e abandono permeiam as páginas do livro. E é difícil lembrar que durante todo esse tempo Cherie ainda era adolescente. O relacionamento com o gerente da banda Scott Anderson (um homem de mais de trinta anos) é debatido abertamente, inclusive sua gravidez aos 16 anos após voltar da turnê européia. Cherie conta como se sentiu um pouco melhor e mais esperançosa ao descobrir que teria um bebê, mas é convencida pelo pai a abortar, uma experiência que ela marca como “a pior que alguém poderia ter na vida”.

Não é uma leitura fácil, no sentido de que a história narrada é muito pesada. Depois de sair da banda, afundada no abuso de drogas, Cherie é sequestrada por um serial killer, torturada e violentada durante horas. Ela consegue escapar somente para se ver ridicularizada por um tribunal que atribui a ela a culpa de tudo que aconteceu e ainda condena o agressor a uma pena ínfima. Aos 21 anos, Cherie chega ao grau terminal por conta de seu vício em cocaína.

A reviravolta das últimas páginas, no entanto, é impressionante. Cherie se interna numa clínica de desintoxicação, se livra do vício de cocaína e tenta recuperar sua carreira. Torna-se conselheira para adolescentes viciados e depois preparadora física. Casa-se com o ator Robert Hayes, tem um filho, divorcia-se e continua a melhor amiga do ex-marido. Um dia, dirigindo numa auto-estrada, vê um cara fazendo uma imensa figura de madeira usando uma serra elétrica. Ela resolve se dedicar a essa arte e hoje é uma das grandes campeãs da categoria.

É uma forma de arte bem esportiva, eu diria

Obviamente que o livro apresenta inúmeras contradições. Cherie às vezes fala da família como a melhor coisa de sua vida, somente para depois dizer que eles a prejudicaram e abandonaram. Clama uma amizade com a mãe sendo que o leitor vê que obviamente as duas têm sérios problemas de relacionamento. Diz que as outras Runaways eram como suas irmãs, somente para contar páginas depois que elas não eram nada próximas. Fatos são fantaziados, dramatizados e é claro a mão do escritor que usa e abusa de metáforas clichés para causar um efeito maior.

Eu não utilizaria esse livro para dar uma conta fiel da história de The Runaways (eu acredito mais na versão de Jackie Fox e de Vicki Blue, mostrada mais explicitamente no documentário Edgeplay), até porque Cherie é famosa por ser uma drama queen. Mas o livro funciona como retrato de uma época e conta, com seus exageros e dramas, a história de uma mulher no mínimo incomum que conseguiu superar diversos preconceitos, em várias esferas.

Interessante:

  • Na década de 80, Cherie lançou uma versão de sua bio entitulada “Neon Angel: The Cherie Currie Story” que tinha uma  versão mais “amenizada” dos fatos (ou seja, excluindo o abuso sexual, a violência, o aborto, a semi-prostituição, o sequestro, …).
  • O prefácio da versão atual é de Joan Jett.
  • O livro conta com várias fotos em papel brilhante mostrando Cherie em vários momentos de sua vida.
  • Foi esse livro que deu origem ao filme The Runaways.


25 Comentários

  1. Muito bom. Eu admiro a Cherie, sabe. Ela é uma mulher forte, por passar por tudo isso, e naquela época em que as coisas eram mais difíceis… Depois dessas fases ruins ela conseguiu ser reconhecida, formar uma família, se dedicar a algo que ela gosta, e ter seus 50 e poucos anos com um belo corpo e linda. Muita gente não a conhece, mas pra mim as Runaways são muito importantes para o cenário do rock. =p

    • Pois é, ela passou por tudo isso numa época que tinha muito mais preconceito, né? E é bom ver que ao invés de se afundar em depressão ela conseguiu superar e ser uma pessoa que ainda corre atrás do que quer, que ainda sonha, que quer sempre se colocar à prova. Isso é muito admirável!

      The Runaways ainda vai entrar pro rock and roll hall of fame! Elas eram simplesmente incríveis!

      • Com certeza, elas são demais! As Runaways são uma das minhas bandas preferidas, mas ninguém que eu conheço conhece elas, alguns só por causa do filme sabem alguma coisa. E eu estava procurando algumas fotos delas e aí parei no seu blog, que eu gostei muito, aliás. Primeira vez que eu leio algo sobre elas e concordo com tudo, principalmente do post sobre a Miley com a Joan, que quando vi também achei um absurdo! hahaha. 😉

        Ah, não sei se você conhece, uma banda muito boa que também já tocou com a Cherie e a Joan, chamada Girl A In Coma. Elas tem uma versão muito boa de ”As The World Falls Down” e uma das músicas mais legais é ”Their Cell”. Apesar de serem diferentes das Runaways, fazem um som legal, ve se você gosta, caso ainda não viu.

        • Manoela, que bom que você gostou do blog! Ainda tenho muita coisa pra escrever sobre The Runaways por aqui (inclusive um próximo post da discografia sobre os bastidores de Live in Japan). Eu também não conheço ninguém que conheça Runaways e os que conhecem só viram o filme e não são nem de longe tão empolgados quanto eu. hahahaha

          Eu ouvi falar dessa banda, mas confesso que ainda não ouvi. Vou dar uma olhada e depois comento aqui o que achei do som.

          Falando em bandas, e quando sai o tão prometido album solo da Cherie pela Blackheart Records, hein? Eles só estão adiando…

  2. Gostaria de ler esse livro. Pena que não tem em português. The runaways é com certeza uma das bandas que eu mais amo. Eu só conheci a banda por causa do filme, mais depois disso minha vida nunca mais foi a mesma.

    • Eu também conheci por causa do filme e depois comecei a pesquisar loucamente sobre elas. É uma história incrível!!! E muda mesmo a vida da gente!

  3. Muito legal a resenha, estou procurando loucamente esse livro!
    Mas com certeza eles exageraram no livro. Dúvido muitoooo dessa história de serial killer, sei lá, achei muito exagerada!
    Mesmo assim, Cherie continua sendo uma artista incrivel e uma verdadeira diva sz

    • May, esse livro é muito legal! Pra quem curte The Runaways, é uma leitura imperdível!

      Mas infelizmente a história do serial killer é verdade, pois o responsável foi julgado em tribunais americanos e várias pessoas testemunharam. Injustamente, ele não foi preso e apenas teve que fazer serviço comunitário. Eu também pensei que era exagero, mas existem registros.

      A Cherie é uma diva em todos os sentidos! hahaha XD

  4. Puts,

    a Cherie botou peito de plástico…!!!

    Sem mais.

  5. Mais do que um soco, é uma sessão de choques um atrás do outro. A História das Runaways foi feita a ferro e fogo. Aquelas cinco garotas foram mesmo heroínas da vida real. E Cherie Currie foi a mais extrema de todas elas, encarnando em si todos os desafios, glórias e horrores do grupo. O único relato que se equipara a esse é o de Christiane F. Coincidência ou não, ambas as garotas têm nas veias o sangue trágico alemão, viveram sua saga na mesma época e têm quase a mesma idade.

  6. Eu gostaria muito de ler o livro, pelo que eu li no post ele parece ser bem forte e muito interessante também.
    Eu intendo essa coisa de não conhecer outros de fãs de The Runaways além de mim… Eu adorei o post, na verdade, eu estou até feliz por encontrar um lugar que fala delas. Eu também as conheci por causa do filme… Eu já conhecia um pouco a Joan Jett, mas depois do filme eu passei a procurar loucamente por coisas sobre elas, e agora, eu sou uma super fã delas. Elas (principalmente a Joan Jett) são as minhas heroínas do Rock, eu me sinto orgulhosa por fazer parte desse “clube” de fãs das The Runaways.
    Acho q não posso imaginar como seria o mundo do rock, se elas não tivessem existido.
    Eu simplesmente acho elas incríveis, e acho que elas são definitivamente as rainhas do rock puro, e suas musicas transmitem energia pra quem ouve.

    • Dryka, eu também me sentia super sozinha sendo fã de The Runaways. Até que comecei a postar sobre elas aqui no blog e vários fãs se manifestaram e descobri que não estava sozinha! hahaha Elas são definitivamente parte da história do rock, uma banda extremamente influente, apesar de nunca ter sido famosa. Continue acompanhando as coisas aqui no blog pois sempre posto coisas sobre elas!

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  10. Olá,
    olha que loucura, quando mais jovens lé pelos meus 15 anos, montei uma banda com minha amiga de infância, tocavamos rock e queriamos mostrar que meninas também sabe tocar rock and roll…bom, o tempo passou, sai da banda e as meninas continuaram com a banda, segui minha vida, estudo História, mas, nunca tinha escutado The Runaway, talvez por sempre ter me interessado em metal melódico. Resumindo, descobri essa incrível banda agora (risos), estou amando o blog, e a parir das dicas desse site, vou escrever um trabalho sobre o feminismo de Segunda Onda e The Runaway…so passei, para parabenizar o site…e se pudessemos manter contato, adoraria algumas dicas de livro e artigo. Obrigada!

    • Tamy,

      Desculpe a demora dessa resposta, mas achei a sua história incrível, viu? E com certeza vai ter mais coisas sobre feminismo e the Runaways…

      Espero te ver mais por aqui!

  11. Eu super quero ler esse livro. Só tem em inglês mesmo? :/

  12. Eu, mais uma que não conheço ninguém que conheça the runaways, também sou fanática e gostei muito do blog. Parabéns!

  13. Eu to doida pra ler esse livro. Gostaria de saber onde vc comprou? Obg

    • Oi Lívia, eu comprei a edição em inglês no site da Livraria Cultura. Infelizmente ainda não tem em português.

  14. Tenho 16 anos e realmente as Runaways mudaram minha vida, desde dos meus 13anos sou louca pelo Bowie por isso logo de cara me identifiquei com a história . Mesmo as Runaways não sendo tão famosas tive a sorte de conviver com pessoas que também curtem as músicas delas é que também se identificam com a história é com os temas abordados nas músicas

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