Em seu segundo discurso para a campanha #HeForShe, Emma Watson pediu que as pessoas compartilhassem suas histórias de igualdade de gênero. Na minha dissertação de mestrado, eu escrevi que concordava com várias estudiosas dizendo que contar sua própria história é uma forma de empoderamento. Então por isso, nesse 8 de março, Dia Internacional da Mulher, vou contar minha história. A minha história de ser mulher.
Porque sempre achei que não era menos que ninguém por ser uma menina. Mas tentaram me fazer acreditar no contrário.
Meus pais sempre me fizeram pensar que eu podia fazer qualquer coisa. Que mulheres não eram menos que homens. Que eu poderia pular de para-quedas se quisesse; ser médica, engenheira, professora, lutadora. Qualquer coisa. Eu cresci acreditando nisso.
Fui uma criança cheia de muitas ideias. Gostava de escrever, inventar brincadeiras, descobrir coisas. Lembro que fiz um jornalizinho da rua uma vez. Sempre tive espírito de liderança, sempre fui criativa. Também gostava de estudar. Me dava bem na escola e até uns doze anos eu falava o que pensava. Não tinha medo de mostrar que sabia das coisas, que gostava disso ou daquilo, não tinha medo de ser quem que eu era. Eu gostava de quem eu era.
Até que veio a adolescência e tudo isso mudou.
De repente, ser quem eu era não era mais tão legal. De repente eu estava absurdamente consciente de que era uma garota. E algumas coisas as garotas não podiam fazer.
Isso foi um choque pra mim.
Por que aos doze eu não podia fazer o que fazia aos oito? Por que de repente tinha tanta coisa pra eu me preocupar? Minhas roupas, meu jeito de andar, meu cabelo, meu jeito de falar, de sentar. As coisas que eu podia gostar ou não, o que eu podia falar ou não. Até como eu lidava com os meus sentimentos. Tudo isso passou a ser vigiado pela sociedade, incluindo aí família, professores, colegas e até gente que eu nunca tinha visto.
Foi nesse época que comecei a ser assediada na rua. Homens que nunca tinha visto mexiam comigo quando eu passava. Eu não entendia. Foi quando minha mãe falou que isso acontecia mesmo, que agora eu era uma moça e talz. Moça. Eu odiava essa palavra. Ela me fazia ser quem eu não era.
Eu sentia que não me adequava e quanto mais a adolescência avançava, mais eu me dava conta que um dos motivos era o fato de eu ser mulher. De líder passei a ser chamada de mandona. De criativa passei a ser exibida. Os garotos – que de repente começavam a ser alvo do meu interesse – pareciam não gostar das qualidades que até então eu gostava em mim mesma. Eu gostava de caras engraçados, por que eu não podia ser engraçada? Porque não é isso que os garotos querem. Lembro de ter lido isso numa Atrevida.
Mas o que eles queriam, então?
Ah sim, tinha um manual. Ele passava de mão em mão das meninas, às vezes como uma revista adolescente, outras como recomendações de mães e professoras. Se eu gostava de um garoto, por que não podia falar pra ele? Porque não é assim. Meninas não faziam isso. E lá fui eu descobrir o monte de coisas que as meninas não fazem.
Eu me lembro de me sentir sufocada por um tempo. A situação piorou quando tive um namorado que só sabia destruir minha auto-estima. Você podia ser mais bonita, você podia ser mais vaidosa, você podia ser mais isso, mais aquilo. Mas e aquilo que eu já era mais? Mais inteligente, mais engraçada, mais criativa, mais amiga? Isso não contava? Não, não contava.
Eu comecei a viver no low profile. De repente, não contava pra ninguém o que fazia. Não queria chamar a atenção. Usava roupas quatro vezes maiores que meu tamanho. Tinha medo de julgarem meu corpo, tinha medo de descobrirem que eu tirava total nas provas. Garotos ficam intimidados com meninas mais inteligentes que eles. Se você fizer isso, vão achar que você não é uma moça decente. Era o que eu mais ouvia.
Eu vivi todos os clichés da adolescência. Andei num trio de meninas, me apaixonei por um amigo, tive uma turma de amigos imensa, cantei em festivais da escola, matei aula de educação física no banheiro. Mas nesse tempo todo, sentia que tinha algo errado. Eu não estava fazendo tudo que realmente queria. O que eu queria? Bem, não ter vergonha, essa era uma coisa. Poder falar livremente que gostava de alguém. Ter minha própria banda. Mostrar meus escritos pra todo mundo. Não ter que fingir que achava a aula de história chata.
Foi mais ou menos nessa altura que comecei a pensar que talvez a vida seria muito mais fácil se eu fosse um garoto. Eu não teria que me preocupar com tudo que falava e fazia, não teria que ouvir coisas como “Moça não faz isso” ou “Você tem que se dar ao respeito”. Essas coisas me tiravam do sério. Até que, aos 15 anos, li As Brumas de Avalon e esse livro mudou a minha vida. Eu parei de querer ser um garoto.
Pela primeira vez, li sobre personagens femininas que eram reais. De todos os tipos, de todos os jeitos. Eu senti um alívio imenso, nem sei como explicar. Lembro que chorei várias vezes lendo o livro. Foi quando me tornei consciente de que era uma mulher e que isso não deveria restringir minhas possibilidades. Que eu deveria ser quem eu realmente era pois mulheres são, acima de tudo, pessoas.
Por que um impacto tão grande com um livro? Oras, porque até então eu só lia fantasia protagonizada por homens. E nesses livros as mulheres ou eram as mocinhas indefesas ou as bruxas solitárias. Eu não me identificava com nenhuma das duas. Me identificava era com o protagonista atrás dos sonhos, o cavaleiro corajoso, o mago cheio de segredos. Ler As Brumas de Avalon me mostrou que mulheres podem ser poderosas como Viviane, frágeis como Guinevere, ambiciosas como Morgause, delicadas como Elaine, dedicadas como Nimue. É o poder da representação. Eu me senti representada. Isso me ajudou a formar minha própria identidade.
Entrei na faculdade com 17 anos logo depois de um namorado terminar comigo porque eu tinha passado no vestibular e ele não. “Vai viver sua vida, é isso que você queria, né?”, ele disse. E era. Claro que era. Eu nem liguei por terminado esse namoro. Se ele pensava assim, quanto antes acabar, melhor, porque o que eu mais quero é viver minha vida. E foi isso que fiz ao longo da minha graduação, fiz estágios, trabalhei, fiz pesquisa. Me senti perdida, às vezes, mas não mais porque tentava me esconder. Comecei a tentar ter orgulho de quem era.
Foi meu terapeuta que disse, no auge dos meus 19 anos, que eu tinha traços masculinos. “Você sabe disso, não sabe?” Eu levantei os ombros. Claro que eu sabia. Eu era líder, criativa, gostava de estudar, era dedicada, decidida, não gostava de ninguém mandando em mim. São características masculinas (só depois fiquei sabendo da dicotomia masculino/feminino que sempre coloca o feminino como o negativo). “Isso te incomoda?”, ele perguntou, “porque você é uma mulher heterossexual”. “Não”, eu falei, “porque eu sou assim e não tem nada de errado com isso”.
Sempre fui feminista, mas só fui dar nome aos bois em 2011 nesse post aqui. Eu tinha acabado de ler a Norton Anthology de Literaturas Femininas e minha mente tinha finalmente se ampliado. A vontade que tive foi de voltar naquele terapeuta e dizer: “Eu não tenho traços masculinos. Por que não posso falar das minhas características fortes como femininas? Por que ninguém me trata como um ser humano?”
Desde então tenho estudado feminismo. Fiz mestrado em literaturas e políticas do contemporâneo na UFMG. Estudei a canadense Margaret Atwood e dediquei o terceiro capítulo da minha dissertação para falar de questões de gênero. Gosto de ficção científica e fantasia. Gosto do protagonismo das mulheres nesses gêneros. Acho que uma mulher pode ser o que ela quiser. Não aceito nenhum ser humano sendo tratado como objeto, por isso tenho objeções fortes contra qualquer forma de objetificação de corpos (o que me torna uma pessoa polêmica em alguns ambientes). Acho que gênero é uma construção. Concordo com Simone de Beauvoir: aprendemos a ser mulheres. E esse aprendizado se dá através do tolhimento de nossas liberdades individuais. Ser feminista é ir contra essa corrente.
Me casei aos 23 anos porque foi o que eu quis. Eu e meu marido dividimos as tarefas do domésticas e ele é melhor dono de casa que eu – ele faz uma ótima couve refogada. Não, ele não é meu capacho. Ele é um homem inteligente e engraçado. Eu sou uma mulher inteligente e engraçada. Pronto. Acredito no casamento como uma união de respeito e cumplicidade em que a igualdade das partes é essencial para que exista amor. Isso às vezes envolve fazer escolhas difíceis para que cada um realize seus sonhos e viva plenamente. Nem todos entendem isso. Sei que sou alvo de comentários maldosos na família e no trabalho. Mas sinceramente? Não sou obrigada. Eu quero ser livre para fazer minhas escolhas. Eu me esforço para viver isso todos os dias.
Eu questiono. A ditadura da beleza. A heteronormatividade do mundo. As questões étnicas. As questões sociais. Tento fazer o melhor que posso e ser alguém que faz a diferença para meus alun@s, meus amig@s e minha família. Eu luto por igualdade de gêneros. Eu sou escritora, professora, blogueira, bailarina, lindy hopper, amiga, amante, sonhadora, mulher. Mulher de verdade.
No fundo, ainda sou aquela menininha que fazia o jornal da rua. Só que a rua se tornou o mundo inteiro.
Mel, a sua história é linda. Me emocionei com o post. E me identifiquei muito, não por apenas tê-la conhecido na adolescência, mas sim por ter passado por algumas coisas muito parecidas, e saber que todas as mulheres passam por essas coisas. “Virar mocinha”, só de pensar nisso, já tenho arrepios. É uma época em que a gente, numa transição de criança para adolescente, está procurando nossa identidade e a sociedade passa esses valores tortos. Eu sempre senti isso de “minha vida seria mais fácil se eu fosse um homem” e, apesar de ter orgulho de ser mulher, às vezes ainda sinto. Quando um aluno me desrespeita apenas por eu ser mulher… quando eu ganho menos por ser mulher… quando preciso provar que jogo videogame de verdade e que posso ganhar de qualquer um, homem ou mulher… quando meu livro de terror não tem tanta credibilidade por eu ser mulher… E toda vez que sinto isso, que tenho esse pensamento, fico triste. Porque antes de tudo somos pessoas e somos todos iguais.
Posso fazer um post semelhante no meu blog? Adorei. E adoro a luta da Emma e o #HeForShe. Ela é admirável! <3
Kakazinha, acho que temos muitos pontos em comum na nossa história. Nós duas nos refugiávamos na internet na adolescência para expressar o que realmente éramos. E o mais legal é que nós duas conseguimos até fazer um nome na época das fanfics, né? Ser nerd/geek e mulher é complicado. Não somos aceitas, nos chamam de poser, duvidam de nossas capacidades, até questionam nossa vida amorosa! E ser escritora é mais complicado também. Alguns gêneros ainda são predominantemente masculinos e os leitores têm resistência.
Claro que pode copiar! A ideia é essa!
Mel, que post exuberante! Porque é um retrato da maioria de nós. Cada um teve a cruz para carregar e encontrou identificação em alguma coisa (seja um filme, livro ou um momento em específico) para entender o que é ser mulher. Mas no fundo, o caminho é o mesmo, as questões inquietam igualmente.
É ótimo poder ver que existe sim uma forma de sair desse turbilhão de emoções que é aceitar que não estamos no mundo prestando um favor aos homens, e nem que eles são menos do que nós, deveríamos ser tratados como iguais. A história do seu terapeuta me revoltou, mas são coisas que escuto até hoje, então realmente é questão de tentar disseminar toda essa força que veio nesse post, e que estão nas suas atitudes, e ter esperança que as pessoas captem a ideia um dia. Mesmo sendo devagar.
Adorei o post, sabe o quanto admiro você – e se não sabia, olha aí eu falando de novo! -, e boa empreitada aí inspirando mais mulheres a se entenderem e se aceitarem. Porque na vida as pessoas podem até nos atirar pedras, mas às vezes é porque elas queriam ter a mesma atitude que nós. Na dúvida, é melhor apenas continuar caminhando. =)
Beijos!
“Ninguém nasce mulher; torna-se mulher.”
Simone de Beauvoir