Inspiração. O sopro da musa. E lá está o artista num canto solitário, talvez meio na penumbra, talvez num lugar isolado. Levado por uma força invisível, ele (engraçado como nessas imagens é sempre um cara) produz uma obra incrível e única em apenas uma tarde ou noite solitária.
Só que não.
De desenhar a escrever um livro de 500 páginas, quem já se atreveu em qualquer arte sabe que num processo de criação acontece de tudo, menos uma revelação súbita que te dá a obra inteira já de cara.
Os Românticos deixaram um legado e tanto no senso comum das pessoas. São deles várias dessas ideias que temos hoje sobre arte e artistas, que povoam a cabeça das pessoas. Artistas são geniais, reclusos, anti-sociais, dados ao vício, enxergam o mundo de uma maneira diferente. Estão além dos meros mortais… Não estou aqui para desmerecer esse movimento crucial na história do pensamento humano (até porque gosto do Romantismo e ele surpreendentemente não é tão ingênuo quando aparenta quando estudamos a fundo), mas apenas para dizer que não é bem assim. “Artistas”, afinal, trabalham como qualquer um.
Dizer que arte é trabalho soa quase como que ofensa para algumas pessoas. Ainda por conta dessa ideia Romântica (e Romântica barata, porque os Românticos não eram tão bobos quanto o senso comum os fez) de que arte é algo oposto ao trabalho, que arte é superior, quintaessencial, algo apenas acessível para aqueles abençoados por uma divindade. Mas pra mim produzir arte é sempre trabalhar. Não importa qual seja essa arte (literatura, dança, pintura, desenho mangá, filme, origami), vem muito trabalho pela frente. Transformar uma ideia em algo palpável é trabalho.
Eu não vejo, pessoalmente, nenhum desmerecimento em pensar que desenhar é trabalho. Que montar uma coreografia é trabalho. Que escrever um livro é trabalho. Até porque eu acredito sim (diferente de algumas pessoas) que artistas devem receber dinheiro pelo que produzem. Porque é trabalho. Não estou dizendo que escritores, desenhistas, coreógrafos e afins devem se vender e fazer tudo por dinheiro. Não é isso. Só defendo que se deve pagar por um livro, por um desenho.
Isso pode parecer óbvio, mas quem é que nunca achou caro que o amigo desenhista cobrasse duzentos reais pra ilustrar? Ou que aquele conhecido que escreve cobrasse pelo ebook que publicou? Essa mentalidade vem de novo da ideia de que arte não é trabalho, que é algo fácil. É natural, é do talento da pessoa, que ela faz num instante só de inspiração.
E aí nos esbarramos com a palavra mágica: inspiração. Eu acredito em inspiração. Mas ela não é, para mim, um momento sublime que faz produzir coisas incríveis. Inspiração é apenas uma ideia, uma faísca, um pontapé inicial. Gosto de pensar em inspiração como inquietação. Algo que me faz começar a pensar diferente, de querer produzir alguma coisa diferente. Na maioria das vezes essas “inspirações” não levam a lugar nenhum.
Isso pode soar estranho para quem nunca trabalhou com arte (ah, e aquela imagem do artista que transforma tudo em seu dia-a-dia em algo diferente? Que aproveita até os mínimos detalhes?), mas é a verdade. 90% das ideias vão embora com o vento porque nos esquecemos (ah sim, nós nos esquecemos), porque elas se mostram pouco práticas ou porque no fim das contas não era uma ideia tão boa assim. Pois é. Nem tudo que pensamos se torna produto final. Até porque entre a inspiração e o resultado palpável existe aquela parte chata que é o tal do trabalho.
E lá vem ele de novo. Trabalho e mais trabalho. Depois de ter uma ideia, cada artista tem seu método de criação. Conheço gente que faz vários rascunhos, gente que grava as ideias em áudio para não esquecer, gente que desenha vários modelos, gente que faz diagramas, posteres e até cronogramas detalhados. A questão é que entre aquela tal inspiração de um dia e o toque final podem existir dias, meses, anos.
Eu, pessoalmente, tento deixar aquela a inspiração me convencer. Quando tenho uma ideia, penso nela por vários dias. Deixo que ela passe o teste do tempo (porque se eu esquecer, bem, não devia ser tão legal assim), o teste da insistência (aqueles dias em que fico conversando com personagens e tramas na cabeça) e finalmente o teste da página em branco (quem nunca se sentou pra escrever algo que parecia incrível e simplesmente descobriu que idiota?). Se ela me convence, bem, então longas horas de trabalho começam. A cabeça dói, os dedos cansam e no final nem tudo fica do jeito que pensamos, mas bem, cá está.
Inspiração não é uma conexão direta, não é um plug da Matrix que você liga no cérebro e pum!, escreveu O Grande Gatsby num fim de semana. É apenas uma ideia. E ideias todos podem ter, não apenas os artistas. A diferença entre uma artista e um não-artista está justamente no trabalho. Artistas são aqueles que trabalham muito e aperfeiçoam sua arte, que sabem retrabalhá-la, jogá-la fora, refazê-la quantas vezes forem necessárias. São aqueles que não têm medo de sacrificar fins de semanas, momentos de lazer e etc para trabalhar. São aqueles que gastam dinheiro em cursos de aperfeiçoamento, aqueles que querem sempre melhorar, aqueles que sabem que ainda têm muito a aprender.
Inspiração no fim, é o que menos conta. Foi 1% do processo. Foi apenas um sopro rápido. Muito rápido.
* * *
Depois de escrever esse texto, me esbarrei com a seguinte citação da Margaret Atwood no Facebook:
“Everyone thinks writers must know more about the inside of the human head, but that’s wrong. They know less, that’s why they write. Trying to find out what everyone else takes for granted.”
― Margaret Atwood, Dancing GirlsUma tradução livre: “Todo mundo pensa que escritores devem saber mais sobre o que tem dentro da mente humana, mas isso está errado. Eles sabem menos, é por isso que escrevem. Tentando descobrir o que o resto do mundo assume como natural”.
Inclusive, a Margaret Atwood tem um livro incrível sobre o ato de escrever. Se chama Negotiating With the Dead: A Writer on Writing. É uma coleção de ensaios sobre as várias questões que rodeiam a vida de um escritor: inspiração, dinheiro, influência, significado, motivações. Quem puder ler, eu recomendo muito mesmo.
Mel, que texto incrível! Tu tava inspirada! (hahahaha)
Sério, eu concordo total com você. Arte dá trabalho e é um trabalho. Que diz que não é assim é porque nunca se dedicou a isso. Prova é que os melhores artistas ralam muito. Essa ideia romântica só desmerece os artistas, que merecem pagamento e reconhecimento pelo seu trabalho. Chamar arte de trabalho não é nenhum desmerecimento, muito pelo contrário.
Perfeito!
Kakazinha, que bom que gostou. Eu fiquei em dúvida se postava ou não, mas decidi que não ia perder nada postando. 🙂
Também não gosto quando falam que arte não é trabalho. Acho um absurdo!
Como disse meu querido Thomas Edison: “O gênio consiste em um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração.”
Logo, esse negócio de inspiração não é o trabalho, e sim o início dele. E pode dar um trabalhão imenso, você conseguiu expressar o que penso sobre arte. É muita sacanagem pensar que as pessoas não devam ser pagas pelo trabalho que fazem, poxa! Imagina só se um livro, quadro, desenho, artesanato, saem do nada? Ninguém gastou tempo, ideias, retrabalho?! Sério?
Eu quis deixar a escrita, leitura e correção de textos como hobby, mas isso foi escolha minha porque queria desenvolver minhas habilidades com os números. Não porque menosprezava a profissão. Engraçado que antigamente existiam até mecenas. Isso nem deve existir mais, tanto que as pessoas perderam a capacidade de se emocionar e valorizar o talento e esforço das outras.
Hoje em dia, o que vale é ser esperto e ter vantagem. Infelizmente.
Ótima reflexão, Mel! Como sempre. =D
Pois, antigamente havia mecenas. Hoje acho que essa figura nem existe mais. Claro que existem projetos de incentivo a cultura e muitos artistas usam isso como força de financiar seu trabalho, mas é diferente. Sinto que cada vez mais as pessoas menosprezam esse tipo de trabalho. Até porque hoje com internet, computador, programas de edição de imagem, câmera digital, todo mundo se sente no direito de ser “artista”. Complicado isso. Mas isso renderia outro post.
Obrigada, Nika. bjs pra você. 🙂
Melissa, antes de falar sobre a inspiração, tão bom ler que arte é sim trabalho! Não só, é resultado de muito trabalho, muitas horas, muito estudo, muito faz-e-refaz. Nada cai do céu. Concordo mais ainda a respeito da remuneração: que mal há nisso? Como se o artista estivesse vendendo a sua alma. Nada mais equivocado. Lendo o seu post, lembrei de um texto da Rachel de Queiroz que casa perfeitamente com o que você escreveu: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20031104p525.htm
Grande beijo.
Cássia,
Que bom ver você por aqui. E que delícia esse link que você mandou. Eu não conhecia esse texto da Rachel (olha a intimidade) não. Muito bom.
Também acho que é diferente receber por um trabalho artístico e se vender.
bjs